Acabo de ler o bom O africano, do prêmio Nobel do ano passado, o francês Le Clézio. O livro fala das reminiscências infantis do autor e da sua relação de amor e ódio com um pai ausente durante boa parte de sua infância.
Já no fim do livro, em uma passagem simplesmente L-A-N-C-I-N-A-N-T-E, ele fala da desilusão pessimista de seu pai com a vida e, particularmente, no exercício da medicina.
Vai, então, o excerto (pp. 100-102):
"Para ele, a doença tem um caráter ofensivo, agora que o encanto da África já deixou de existir. Pouco a pouco a profissão que ele exerceu com tanto entusiasmo passa a ser opressiva no calor, na umidade da margem, na solidão desse fim de mundo. A proximidade do sofrimento o extenua: todos esses corpos que ardem de febre, os ventres dilatados dos cancerosos, aquelas pernas cheias de feridas, deformadas pela elefantíase, os rostos comidos pela lepra ou a sífilis, aquelas mulheres laceradas por partos, aquelas crianças envelhecidas por carências, com a pele cinzenta como pergaminho, com os cabelos cor-de-ferrugem, os olhos aumentados pela proximidade da morte. Muito tempo depois ele ainda me falaria dessas coisas terríveis que era preciso enfrentar no dia-a-dia, como se fosse a mesma sequência que recomeçava: uma velha enlouquecida pela uremia, que tinha de ser amarrada na cama, um homem do qual ele extraiu uma tênia tão comprida que foi preciso enrolá-la num pedaço de pau, a mulher ainda jovem que ele teve de amputar por causa de uma gangrena, a outra que já morria de varíola quando a levaram a ele, com o rosto inchado e coberto de chagas. A proximidade física com aquela terra, o sentimento que só é dado pelo contato com a humanidade em toda a realidade de seus sofrimentos, o odor da pele, o suor, o sangue, a dor, a esperança, a pequena réstia de luz que às vezes se acende no olhar de um doente, quando a febre se afasta, ou esse infinito segundo durante o qual o médico vê a vida extinguir-se na pupila de um agonizante - tudo isso que o havia arrebatado, eletrizado no início, quando ele navegava pelos rios da Guiana, quando andava pelas trilhas das montanhas no planalto camaronês, tudo isso é reposto em questão em Ogoja, devido à desesperadora deterioração dos dias, num pessimismo não expresso, porque ele constata a impossibilidade de chegar ao fim de sua tarefa.
Com a voz ainda velada pela emoção, ele me conta o caso do jovem ibo que lhe levaram ao hospital de Ogoja, de pés e mãos amarrados e com a boca amordaçada por uma espécie de focinheira de pau. Fora mordido por um cão, e agora a raiva se manifestou. Ele está lúcido, ele sabe que vai morrer. Por instantes, na cela onde ficou isolado, é tomado por uma crise, seu corpo se arqueia todo na cama e, apesar das correias, os membros são possuídos por tal força que o couro parece prestes a romper-se. Ao mesmo tempo, ele grunhe e berra de dor, sua boca espuma. Depois volta a cair numa espécie de letargia, derreado pela morfina. Algumas horas mais tarde, é meu pai que enfia em sua veia a agulha que lhe injeta o veneno. Antes de morrer, o rapaz olha para meu pai, perde a consciência e num último suspiro seu peito afunda. Que homem se pode ser, quando se viveu tudo isso?"
P.S. : Aproveito, no link do livro, para mostrar, a quem não conhece, o Skoob, uma comunidade de leitores. Aproveite e compartilhe seus gostos literários. Não esqueça de me adicionar!
"Trago dentro do meu coração,
ResponderExcluirComo num cofre que se não pode fechar de cheio,
Todos os lugares onde estive,
Todos os portos a que cheguei,
Todas as paisagens que vi através de janelas ou vigias,
Ou de tombadilhos, sonhando,
E tudo isso, que é tanto, é pouco para o que eu quero."