sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

O curioso caso de Paula Oliveira



É verdade, a vida, às vezes, parece um enredo de cinema. A aparente - não desejo entrar no mérito se o fato realmente ocorreu ou não - automutilação da brasileira na Suíça é algo mais comum do que parece e é descrita na literatura médica pelo nome de Dermatite Factícia.
Comprovando a afirmação da psiquiatra Ana Beatriz Barbosa Silva de que o psicopata mora ao lado, quase todos os dias, em meu consultório, me deparo com pacientes que apresentam moléstias da área das Psicodermatoses. Da Tricotilomania à Onicofagia, passando pelas Escoriações Neuróticas, observamos que o território cutâneo é manifestação frequente de diversas doenças mentais - segundo alguns autores esta associação se explica justamente porque a pele e o Sistema Nervoso Central, quando em sua formação embrionária, derivam do mesmo tecido original, o Ectoderma.



Mas voltemos à Dermatite factícia:


Também chamada Dermatite artefacta ou pantomímica, consiste na provocação deliberada de lesões cutâneas pelo paciente, sem que este admita o fato na consulta.


Geralmente representam um desafio diagnóstico, pois faltam informações verídicas na história. Podem, pelos inúmeros métodos de simulação empregados e pela variedade de lesões conseguidas (lesões lineares, bolhosas, cáusticas) simular diversas dermatoses diferentes, como Pênfigos, Porfiria, Vasculites. Nesse caso, resta ao dermatologista bancar o detetive, mas com extrema cautela. Conforme trabalho publicado recentemente por pesquisadores da Universidade Federal de Juiz de Fora, "o confronto direto com o paciente poderá ser desastroso, resultando no abandono do tratamento".




Seria uma tentativa desesperada, aberta e clara de socorro, visando atrair atenção, simpatia ou preocupação de familiares e amigos, quiçá para a obtenção de benefícios secundários.




Estellita-Lins e colaboradores, em excelente abordagem, recorrem à psicanálise para explicar a origem da doença: "o masoquismo pode estar presente como atitude de autoflagelação ou como perversão sexual. Observações da clínica psicanalítica sugerem um processo de luto patológico no qual o aspecto de perda do objeto de amor implica ódio recalcado. (...) O paciente volta-se enigmaticamente contra si próprio, já que o lugar da pessoa amada (que está sendo pranteada) permanece na fantasia até o término da elaboração do luto. Esse tipo de auto-agressão seria uma represália real contra uma parte do objeto fantasmático perdido (morto) dentro de si próprio".




Como disse o poeta Rimbaud, "a pele é o que há de mais profundo".






quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Que homem se pode ser



Acabo de ler o bom O africano, do prêmio Nobel do ano passado, o francês Le Clézio. O livro fala das reminiscências infantis do autor e da sua relação de amor e ódio com um pai ausente durante boa parte de sua infância.



Já no fim do livro, em uma passagem simplesmente L-A-N-C-I-N-A-N-T-E, ele fala da desilusão pessimista de seu pai com a vida e, particularmente, no exercício da medicina.



Vai, então, o excerto (pp. 100-102):






"Para ele, a doença tem um caráter ofensivo, agora que o encanto da África já deixou de existir. Pouco a pouco a profissão que ele exerceu com tanto entusiasmo passa a ser opressiva no calor, na umidade da margem, na solidão desse fim de mundo. A proximidade do sofrimento o extenua: todos esses corpos que ardem de febre, os ventres dilatados dos cancerosos, aquelas pernas cheias de feridas, deformadas pela elefantíase, os rostos comidos pela lepra ou a sífilis, aquelas mulheres laceradas por partos, aquelas crianças envelhecidas por carências, com a pele cinzenta como pergaminho, com os cabelos cor-de-ferrugem, os olhos aumentados pela proximidade da morte. Muito tempo depois ele ainda me falaria dessas coisas terríveis que era preciso enfrentar no dia-a-dia, como se fosse a mesma sequência que recomeçava: uma velha enlouquecida pela uremia, que tinha de ser amarrada na cama, um homem do qual ele extraiu uma tênia tão comprida que foi preciso enrolá-la num pedaço de pau, a mulher ainda jovem que ele teve de amputar por causa de uma gangrena, a outra que já morria de varíola quando a levaram a ele, com o rosto inchado e coberto de chagas. A proximidade física com aquela terra, o sentimento que só é dado pelo contato com a humanidade em toda a realidade de seus sofrimentos, o odor da pele, o suor, o sangue, a dor, a esperança, a pequena réstia de luz que às vezes se acende no olhar de um doente, quando a febre se afasta, ou esse infinito segundo durante o qual o médico vê a vida extinguir-se na pupila de um agonizante - tudo isso que o havia arrebatado, eletrizado no início, quando ele navegava pelos rios da Guiana, quando andava pelas trilhas das montanhas no planalto camaronês, tudo isso é reposto em questão em Ogoja, devido à desesperadora deterioração dos dias, num pessimismo não expresso, porque ele constata a impossibilidade de chegar ao fim de sua tarefa.



Com a voz ainda velada pela emoção, ele me conta o caso do jovem ibo que lhe levaram ao hospital de Ogoja, de pés e mãos amarrados e com a boca amordaçada por uma espécie de focinheira de pau. Fora mordido por um cão, e agora a raiva se manifestou. Ele está lúcido, ele sabe que vai morrer. Por instantes, na cela onde ficou isolado, é tomado por uma crise, seu corpo se arqueia todo na cama e, apesar das correias, os membros são possuídos por tal força que o couro parece prestes a romper-se. Ao mesmo tempo, ele grunhe e berra de dor, sua boca espuma. Depois volta a cair numa espécie de letargia, derreado pela morfina. Algumas horas mais tarde, é meu pai que enfia em sua veia a agulha que lhe injeta o veneno. Antes de morrer, o rapaz olha para meu pai, perde a consciência e num último suspiro seu peito afunda. Que homem se pode ser, quando se viveu tudo isso?"




P.S. : Aproveito, no link do livro, para mostrar, a quem não conhece, o Skoob, uma comunidade de leitores. Aproveite e compartilhe seus gostos literários. Não esqueça de me adicionar!

domingo, 4 de janeiro de 2009

A fronteira da pieguice




A maioria dos filmes americanos ditos comédias românticas é uma lástima. A pieguice ou sentimentalismo barato são a regra e a tentativa para que o espectador se emocione a qualquer preço tem suas consequências. Toda pessoa com um pouco de senso crítico percebe essa manipulação e passa longe até do cartaz do filme.




Não é o caso da adaptação do livro Marley e eu. Pode ter sido uma interpretação pessoal, mas achei que o filme margeia muito bem a pieguice. Sabe ser delicado sem ser açucarado, doce sem ser melado, enfim, emociona sem chantagear sua mente.


Fiquei pensando em quantas oportunidades que perco de me emocionar só correndo atrás dos filmes cerebrais, pensantes, cult.




Talvez isso possa ser extrapolado para a vida... às vezes somos profissionais demais, porque não pega bem trabalhar com a barba por fazer, com a camisa pra fora, com a gravata um pouco frouxa...



As pessoas andam tão loucas atrás da grana que até nos momentos de descontração, em um chopinho ou algo parecido passam a mostrar aquela sua aparência ponderada, aquelas frases pensadas, só falam do trabalho.




De longe, ao avistar O Profissional, corro na hora!